terça-feira, 11 de novembro de 2008

guariroba

O Unplugged do Gil era o disco festivo da casa em que cresci. Minha mãe de meses em meses deixava suas contemplações analíticas e abria os móveis todos pros lados, enrolava os tapetes e dançava, dançava o disco inteiro, girando sobre seu prumo. Seu modo de dançar música brasileira como um twist. É disso que se trata o tropicalismo? Ou era um dos inúmeros discos da hora de molhar as plantas, quando meu pai finalmente largava o trabalho perto do fim da tarde e colocava pra tocar bem alto alguma coisa, quando o sol baixo não queima mais as plantas molhadas e às vezes era o Gil ia cantando por todos os lugares do terreno, misturado ao cheiro da terra úmida.

Também acontecia de colocarmos o Unplugged pra tocar uns momentos antes de uma festa, como um abre-alas, pra preparar a mesa de bebidas, as coisas passando eu quero, ou trocar os infinitos móveis, quadros, luzes de lugar. E às vezes quando as festas eram só pros meus amigos, aproveitando que meus pais viajavam muito na alta adolescência, era o Gil que me acompanhava na espera dos convidados. E daí, muitas vezes também era o disco que tocava na manhã seguinte, quando eu e as meninas limpávamos a casa de latinhas de cerveja e bitucas de cigarro. É um disco pra diante.

Foi um dos poucos discos que a generosidade dos meus pais não me deixou levar comigo quando me mudei. Acho que por isso fiquei anos sem ouvi-lo e com um certo preconceito daqueles de que as coisas boas mesmo que o Caetano e ele fizeram são as mais antigas. Mas se trata de um disco que reúne o Gil de várias épocas, um acústico da MTV, e,ainda depois de um sarau na casa do Flávio tive a necessidade de ouvi-lo. Baixei no Slsk. Como se não bastasse, justificada pelo próprio, afinal não é o próprio Gil que defende tudo que deve ser livre? Cito: "Eu, Gilberto Gil, cidadão brasileiro e cidadão do mundo, Ministro da Cultura do Brasil, trabalho na música, no ministério e em todas as dimensões da minha existência sob a inspiração da ética hacker, e..."

Nunca havia pensado nisso antes. O tropicalismo foi mesmo uma atitude hacker.
Cf. o livro que não é grande coisa: Tropicália uma revolução na cultura brasileira.
Cf. Celso Favaretto, Alegoria Alegria, esse sim.

Quanto a atitude hacker Cf. Ana Cristina Cesar sempre pra outras questões também mas cuidado!
e Op. Cit. T.S. Eliot, Tradição e talento individual.
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Mas só fiz essa digressão pra dizer que nesse domingo muito triste, mas também muito iluminado, no caminho de almoçar com minha mãe, tirei umas fotos de uma árvore com folhas muito claras enquanto Refazenda nos fones de ouvido. É uma música da qual sempre gostei, por perceber do período das frutas, uma parceria de um homem com o tempo do mundo, já tão difícil notar que as mangas dão em janeiro quando se há mangas num supermercado o ano inteiro. Mas eu conheço o mar da Bahia, na terra em que o mar não bate/ não bate o meu coração e já comi muita manga caída de árvore na praia e eu boiando dentro dele. Minha mãe dizendo: manga quente?!? vai dar dor de barriga. Nunca deu. E se agradeço a alguém por isso, é ao Gil.

Em verdade tenho descoberto muito o Gil desde que voltei para o Brasil, por exemplo, tenho ouvido muito Oriente,

Se oriente, rapaz
Pela constelação do Cruzeiro do Sul
Se oriente, rapaz
Pela constatação de que a aranha
Vive do que tece
Vê se não se esquece
Pela simples razão de que tudo merece
Consideração

Considere, rapaz
A possibilidade de ir pro Japão
Num cargueiro do Lloyd lavando o porão
Pela curiosidade de ver
Onde o sol se esconde
Vê se compreende
Pela simples razão de que tudo depende
De determinação

Determine, rapaz
Onde vai ser seu curso de pós-graduação
Se oriente, rapaz
Pela rotação da Terra em torno do Sol
Sorridente, rapaz
Pela continuidade do sonho de Adão

E talvez por estar nesta tópica de procurar por isso, tenho achado que as letras do Gil falam de viver, de modos de entender positivamente e lançam segredos do universo no caos, sorrindo com a calmaria da compreensão. Refazenda, é tão claro, como um tecido, e eu nunca tinha notado, é uma música sobre fim e começo, ciclos que se lançam, justamente a alegria que eu precisava. Alegria é deixar o corpo e ir em direção à paisagem. Esses versos só entendi porque uma outra árvore balançava os ramos sem luar no alto dos meus olhos:

Abacateiro serás meu parceiro solitário
Nesse itinerário da leveza pelo ar

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