"A senhora é...?", diz ele.
"Elizabeth Costello."
"Sei. A requerente."
"Ou suplicante, se isso melhora minhas chances."
"E é sua primeira audiência?"
"É, sim."
"E a senhora quer...?"
"Quero passar pelo portão. Entrar. Fazer o que vem em seguida."
"Sei. E já deve estar sabendo que existe a questão da crença. Tem uma declaração a nos fazer?"
"Fiz uma declaração, revisada, intensamente revisada. Revisada até o limite das minhas forças, eu me arriscaria a dizer. Não acredito que esteja em mim revisar mais. Os senhores têm um exemplar, acho."
"Temos. Revisado até o limite, diz a senhora. Alguns de nós diriam que sempre existe mais uma revisão a ser feita. Vejamos. Pode nos ler a sua declaração, por favor."
Ela lê.
"Sou escritora. Podem achar que em vez disso eu devia dizer que fui escritora. Mas sou ou fui escritora por causa de quem eu sou ou era. Não deixei de ser o que eu era. Ainda. Ou pelo menos é isso que sinto.
"Sou escritora, e o que escrevo é o que escuto. Sou secretária do invisível, uma das muitas secretárias ao longo das eras. Esta é a minha missão: secretária estenógrafa. Não me compete interrogar, julgar o que me é dado. Simplesmente escrevo as palavras e testo, testo a sua integridade, para ter certeza de que ouvi direito.
"Secretária do invisível: a expressão não é minha, faço questão de dizer. É um empréstimo de um secretário de ordem superior, Czeslaw Milosz, um poeta, talvez conhecido dos senhores, a quem foi ditada muitos anos atrás."
Faz uma pausa. É ali que espera que a interrompam. Ditada por quem?, espera que perguntem.E tem a resposta pronta: Pelos poderes que estão além de nós. Mas não há interrupção nem pergunta. Em vez disso, o porta-voz deles acena-lhe com o lápis. "Continue".
"Antes de eu poder passar, exigem que declare minha crença", ela lê. "Respondo: uma boa secretária não deve ter crenças. É inadequado à sua função. Uma secretária deve simplesmente estar disponível, esperando o chamado."
Mais uma vez espera uma interrupção: Chamado de quem? Mas não haverá perguntas ao que parece.
"Em meu trabalho, a crença é uma resistência, um obstáculo. Tento me esvaziar de resistências."
"Sem crenças não somos humanos." A voz vem do que está mais à esquerda, aquele que ela rotulou em particular de Grimalkin, um sujeitinho mirrado, tão baixo que o queixo mal ultrapassa a bancada. Na verdade, existe um pertubador traço cômico em cada um deles. Exclusivamente literário, pensa."
"Elizabeth Costello."
"Sei. A requerente."
"Ou suplicante, se isso melhora minhas chances."
"E é sua primeira audiência?"
"É, sim."
"E a senhora quer...?"
"Quero passar pelo portão. Entrar. Fazer o que vem em seguida."
"Sei. E já deve estar sabendo que existe a questão da crença. Tem uma declaração a nos fazer?"
"Fiz uma declaração, revisada, intensamente revisada. Revisada até o limite das minhas forças, eu me arriscaria a dizer. Não acredito que esteja em mim revisar mais. Os senhores têm um exemplar, acho."
"Temos. Revisado até o limite, diz a senhora. Alguns de nós diriam que sempre existe mais uma revisão a ser feita. Vejamos. Pode nos ler a sua declaração, por favor."
Ela lê.
"Sou escritora. Podem achar que em vez disso eu devia dizer que fui escritora. Mas sou ou fui escritora por causa de quem eu sou ou era. Não deixei de ser o que eu era. Ainda. Ou pelo menos é isso que sinto.
"Sou escritora, e o que escrevo é o que escuto. Sou secretária do invisível, uma das muitas secretárias ao longo das eras. Esta é a minha missão: secretária estenógrafa. Não me compete interrogar, julgar o que me é dado. Simplesmente escrevo as palavras e testo, testo a sua integridade, para ter certeza de que ouvi direito.
"Secretária do invisível: a expressão não é minha, faço questão de dizer. É um empréstimo de um secretário de ordem superior, Czeslaw Milosz, um poeta, talvez conhecido dos senhores, a quem foi ditada muitos anos atrás."
Faz uma pausa. É ali que espera que a interrompam. Ditada por quem?, espera que perguntem.E tem a resposta pronta: Pelos poderes que estão além de nós. Mas não há interrupção nem pergunta. Em vez disso, o porta-voz deles acena-lhe com o lápis. "Continue".
"Antes de eu poder passar, exigem que declare minha crença", ela lê. "Respondo: uma boa secretária não deve ter crenças. É inadequado à sua função. Uma secretária deve simplesmente estar disponível, esperando o chamado."
Mais uma vez espera uma interrupção: Chamado de quem? Mas não haverá perguntas ao que parece.
"Em meu trabalho, a crença é uma resistência, um obstáculo. Tento me esvaziar de resistências."
"Sem crenças não somos humanos." A voz vem do que está mais à esquerda, aquele que ela rotulou em particular de Grimalkin, um sujeitinho mirrado, tão baixo que o queixo mal ultrapassa a bancada. Na verdade, existe um pertubador traço cômico em cada um deles. Exclusivamente literário, pensa."
(Quase ao fim de Elizabeth Costello, do J.M. Coetzee,
meu maior escritor vivo,
traduzido por José Rubens Siqueira.)
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Esse é um livro muito culto. Muito mais culto do que eu. Nesta passagem é claro um frasco de Kafka, além de sempre um Beckett no ar, etcetera. Mas o livro é cheio de referências à filosofia que eu não pego. Não sei se alguém sai perdendo. De todo modo, recomendo avidamente a leitura de: Desonra ou Vida e época de Michel K. ou A espera dos bárbaros. Exatamente nessa ordem.
2 comentários:
ai, lê detectives salvages, do bolaño! ele é o meu quase-vivo preferido. não consegui superar. acho que nunca vou.
ai, cecília me disse isso também, me disse. eu quero muito ler o bolaño, amiga minha.
mas eu ando mal de romances, só tenho conseguido ler poemas e poesia e teoria e filosofia. e, ah, e cartas. vou ver se levo ele comigo pela vida em janeiro.
beijobeijo
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