quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

o insípido e o sabor

pois, mas

arte tem que ter um pouco do que nisso falta, né,
de ser um absurdo que dá certo,

(o risco, o riso, a razão)

lá embaixo vou te mostrar um trecho que me fez lembrar dessa história da bienal, que eu concordo com você em milhão. esses curadores (precisariamos de uma terceira palavra para nomeá-los sem demérito de outros) comerciais são produtores financeiros que estão a não viver a arte. mas concordo só se não for pra pensar também e imediatamente: "são uns asnos", o que sem dúvida me parecem, porque se cortam afeto e inteligência da apreciação de um resultado final artístico, pô, pra que fazer? e você acha mesmo que é só uma questão de vaidade e dinheiro desses caras? será que não os desculpamos demais? concordo que há sempre alguma coisa boa aqui ou lá nessas exposições e tudo o mais. mas se contentar antes de ter comido não parece uma violência com o próprio estômago? falo assim, com força, mas sei que você não estaria nunca sendo condescendente com eles. porque não podemos ser. por que não podemos ser?

atualmente (desde ontem conversando com o breno) me parece que se alguém, um artista com intenção, faz alguma coisa com atenção devida e que não passe perto dos discursos/formas da publicidade, da propaganda, a chance de ser bom, fica grande. não digo que se pintassem uma lata de campbell's de novo não seria bom. digo do discurso subliminar que a publicidade usa, seja em formas confortáveis ou imperativas. isso (em arte) me parece sujo. se foi feito dentro de uma concentração que se animou a ser outra coisa e está fora de querer te vender ou comprar, a gente vê com os olhos bons, quer entender. a gente está querendo estar vivo, não está? mas ao mesmo tempo, estamos tão entretecidos (entristecidos ou entretidos também) uns nos outros (toda a falta de tempo e espaço prum, por exemplo, silêncio) que é: 1. muito difícil marcar uma diferença no fazer; 2. é muito necessário marcar separações entre as coisas. afinal, me parece que também a falta de limitação (que é um puta dum limite) exige que sejamos menos condescendentes. acho que precisamos voltar ao risco como um critério que não está dado a priori, risco que não está amalgamado em toda espécie de fazer e que deveria estar em tudo que é arte.

ok, mas daí talvez eu esteja de novo a voltar e a voltar e avançar para a questão do "novo". mas oras, estamos no início do século XXI (algo me constrange ao escrever em que século estamos), poderíamos pensar de modo diferente?


agora me lembrei de que o trecho que ia citar é o final de um texto do Leo Steinberg:

"A arte moderna sempre se projeta numa zona de penumbra onde nenhum valor está fixado. Ela nasce sempre na ansiedade, pelo menos desde Cézanne. Picasso disse certa vez que o que mais nos importa em Cézanne, mais do que suas pinturas, é sua ansiedade. Parece-me uma função da arte moderna transmitir essa ansiedade ao espectador, de modo que seu embate com a obra seja -pelo menos enquanto ela é nova- um problema existencial genuíno. Como o Deus de Kierkegaard, a obra nos molesta com sua absurdidade agressiva, assim como Jasper Johns quando se apresentou a mim vários anos atrás. Ela requer uma decisão na qual descobrimos algo de nossa própria qualidade; e essa decisão é sempre um "salto da fé", para usar o termo famoso de Kierkegaard. Como o Deus de Kierkegaard, que pede um sacrifício a Abraão, violando todos os padrões morais, o quadro parece arbitrário, cruel, irracional, exigindo nossa fé, ao mesmo tempo que não faz nenhuma promessa de recompensa futura. Em outras palavras, é da natureza da arte contemporânea original apresentar-se como um risco de graves conseqüências. E nós, o público, incluindo os artistas, deveríamos ter orgulho de viver esse problema, porque nada mais nos pareceria muito fiel à realidade; e a arte, afinal, supõe-se que seja um espelho da vida.

Eu estava lendo o Êxodo, capítulo l6, que descreve a queda do maná no deserto, e considerei que o trecho vinha a calhar:

Quando se evaporou a camada de orvalho que caíra, apareceu na superfície do deserto uma coisa miúda, granulosa, fina como a geada sobre a terra. Tendo visto isso, os israelitas disseram entre si: 'Que é isso?'. Pois não sabiam o que era. Disse-lhe Moisés: 'Isso éopão que Iahweh vos deu para vosso alimento. [...] Cada um colha dele quanto baste para comer, um gomor por pessoa [...]'

E os israelitas assim o fizeram; e apanharam, uns mais, outros menos. Quando mediram um gomor, nem aquele que tinha juntado mais tinha maior quantidade, nem aquele que tinha colhido menos encontrou menos: cada um tinha recolhido o quanto podia comer.

Moisés disse-lhes: 'Ninguém guarde para a manhã seguinte'. Mas eles não deram ouvidos a Moisés, e alguns guardaram para o dia seguinte; porém deu vermes e cheirava mal. [...]


A casa de Israel deu-lhe o nome de mantá. Era [...] [de] sabor como bolo de mel.
Disse Moisés: 'Eis o que Iahweh ordenou: Dele enchereis um gomor e o guardareis para as vossas gerações, para que vejam opão com que vos alimentei no deserto. [...] Arão o colocou diante do Testemunhopara ser conservado.

Depois de ler essa passagem, parei e pensei como o maná era parecido com a arte contemporânea; não apenas por ser um enviado de Deus [Iahweh], ou por ser um alimento do deserto, ou por ninguém conseguir compreendê-lo bem - pois 'não sabiam o que era'. Nem mesmo porque uma parte dele foi imediatamente posta num museu - e o guardareis para as vossas gerações"; tampouco porque o seu gosto permaneceu um mistério, uma vez que a frase aqui traduzida como 'sabor como bolo de mel', é na realidade uma suposição; essa palavra hebraica não ocorre em nenhum outro lugar na literatura antiga e ninguém sabe o que ela realmente significa. Daí a lenda de que o maná tinha o sabor que cada um desejava; embora viesse de fora, seu sabor na boca era invenção de quem o provasse.

Mas o que decidiu a analogia com a arte moderna, para mim, foi esta Ordem: colher do maná todos os dias, de acordo com o que for comer, e não para conservá-lo como uma garantia ou investimento para o futuro, fazendo da colheita de cada dia um ato de fé."

["A arte contemporânea e a situação de seu publico", trad. Célia Euvaldo, NY, primavera de 1960.]

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o novo fica novo até que fique velho.

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um beijo,


ps. a questão de ter um "projeto estético/ existencial/ crítico" ou não, fica pra depois ou fica para sempre.
ps. do ps. ganhei o dia! tão cedo e até já citei a Bíblia!
ps. do ps. do ps. meu cunhado francês ao ler no jornal a palavra "curador" pensou que viesse de "curandeiro"!

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